Em junho do ano passado (2022), fui convidada para participar do tributo a Kathen Romeu, modelo e design de interiores morta com um tiro no peito aos 24 anos durante uma ação policial, grávida de 14 semanas. O tributo aconteceu no complexo do Lins, zona norte carioca, mesmo lugar onde aconteceu o crime. O convite seria para fazer uma roda de conversa com as atuais jovens grávidas, que a organização do evento contemplou com fraldas e itens ligados a chás de bebês.
Ao chegar lá e me deparar com um banner gigante com a imagem de Kathen e sua linda barriguinha, perdi a coragem! Travei, perdi as forças. Como iria levar uma injeção de força e esperança àquelas jovens moradoras de favela, se tanto eu quanto elas sabemos que o risco da “fatalidade” que tirou a vida da modelo e seu bebê, segue grande. O corpo feminino não é respeitado!
Mesmo no momento especial onde se aguarda a espera de um filho, ou no próprio ato de parir. Principalmente o corpo feminino preto (dados e estatísticas comprovação essa afirmação). São 9 meses, quase um ano. Fazer do nosso ventre abrigo para um desconhecido, que não sabemos como explicar o que sentimos em palavras de tão avassalador que é o sentimento que nos desperta. Alguns chamam de amor, eu digo que é força!
Força que faz vencer a dor e até a morte! Força que faz manter de pé a mãe de Kathen, força que faz manter de pé as vítimas do Senhor Giovanni Quintella Bezerra, o anestesista estuprador. Costumo dizer que quando se trata de maternidade preta, a ordem natural da vida se inverte e somos nós, mães pretas é que temos maiores chances de enterrar nossos filhos.
Como então maternar e esperançar diante dessa realidade que a sociedade escravocrata brasileira nos impõe? Como é possível gestar, parir, esperançar, sonhar um futuro com nossos herdeiros com esse risco real sobre nossas cabeças? Não tenho essa resposta. Arrisco dizer que ninguém tenha.
A mesma insegura que acompanhou nossos ancestrais quando foram sequestrados até essa terra, dia após dia sem saber o que lhes esperava na manhã seguinte, no instante seguinte. É a mesma insegura que temos ao parir um filho nesse solo, oh mãe gentil nessa pátria amada, idolatrada, salve, salve.
O sentimento que caminha lado a lado ao ver e acompanhar o desenvolvimento dos nossos pequenos é o de orgulho e um outro sentimento que não faria o menor sentido: o medo! O medo que nos dá ao vê-los saindo pela porta. Será que vai voltar? Não temos essa resposta!
Não temos o privilégio de deixar para amar nossos filhos amanhã, de fazer as pazes amanhã, de dizer que ama depois. A bala não perdoa, o fuzil está sempre destravado. A violência não tem barreiras geográficas, não pede licença e nem espera momentos delicados da vida de uma mulher.
Naquele mesmo mês, ainda tivemos a certeza de que nem na condição de grávidas ou de parturientes somos respeitadas. Pois quando um anestesista, dentro de um centro cirúrgico, tem a total tranquilidade para violentar uma mulher desacordada, com uma dose cavalar de anestesia que o próprio ministrou, colocando sua vida em risco para abusar do seu corpo assim que essa mulher dá à luz, ele não só desrespeita essa mulher, mas a todas nós que temos a áudio missão de viver como mulheres nesse país.
Todas nós mulheres estamos de luto, estamos com o mesmo sentimento de nojo, todas ofendidas, com medo e inseguranças uma vez que foi provado que o corpo feminino não está seguro nem deitado em uma maca de maternidade. Todas nós também sangramos um pouco! Todas nós também fomos violentadas! Todo estuprador é também um assassino! Todas nós morremos um tanto ao termos a iminência da violência como sombra. Sombra que nos acompanha ao solicitar um carro de aplicativo e sofrermos o risco real do motorista aplicar o golpe do aromatizador de ambiente no carro (procurem saber) nos entorpecer para abusar dos nossos corpos, seja num hospital ao vivenciar um dos momentos mais sublimes como o do parto ou seja ao caminhar pela comunidade onde nasceu e foi criada como é o caso de Kathen.
Amemos nossos filhos e filhas sempre que houver oportunidade. Eles precisam dessa certeza de afeto, e nós também. A segurança do afeto é a única que podemos dar e essa nada nos tira ! Que a força do amor não nos falte!
Thainá Briggs
Mulher negra, carioca, mãe solo, militante
Escritora e Assistente social.
Gestora empresarial.
Pós-graduada em políticas públicas/direitos humanos/diversidade sexual e de gênero.
Poeta e escritora das seguintes obras:
Que toda palavra dita ou escrita seja amor (2021)
Nossas linhas pretas na pandemia (2021);
Tinha que ser preto (2021)
Idealizadora e Coordenadora do primeiro livro sobre mães pretas solos do Brasil: Mães Pretas -Maternidade Solo e Dororidade (2021) – Premiado como livro do ano pelo prêmio Reflexo Literário e 2° melhor capa do ano e 3ª melhor antologia.
”Quando o racismo bate à porta – Previsão de lançamento para maio de 2023.
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